Etapa 1 – Relatório 10


22.MAI.2002

Ola amigos, acabei de atravessar a grande cordilheira do Andes. Desci as últimas montanhas e cheguei no Oceano Pacífico, passando pela região desértica do sul peruano. Completei meus primeiros cinco mil quilômetros e agora estou em Pisco, pequena cidade do litoral a 240 km da capital Lima.

Saímos do eixo turístico de Cuzco e atravessamos a cordilheira no seu sentido mais acidentado, leste-oeste. Os Andes se divide em duas cadeias de montanhas paralelas ao oceano, a cordilheira oriental e a ocidental. Descemos a oriental e visitamos o vale do rio Apurimac (aprox. 1400 m.a.n.m.) que fica entre as duas cadeias.

Antes de chegar no rio passamos por grandes subidas e descidas perto da cidade de Abancay (chegamos a descer mais de 40 km seguidos). Um caminhão me fechou e acabei caindo da bicicleta. Esfolei o braço e a perna e torci a mão. Nada sério, hoje os esfolados já estão cicatrizados e a mão quase não dói. Os moradores dessa região foram muitos simpáticos (com exceção do desnaturado motorista) e nos ajudaram muito.

Descemos até chegar num trecho de estrada em construção que acompanha paralelamente o rio Apurimac. Grande parte desta estrada que pedalamos foi construída nos últimos dez anos por empresas brasileiras.

A construção da estrada é uma interessante obra de engenharia onde existem vários desafios de cortes de montanhas rochosas e grandes contensões do rio. A estrada está interditada para veículos comuns e pedalamos perto de imensas retro-escavadeiras e caminhões durante esses 150 km de obra entre Abancay e Chalhuanca.Estas grandes obras empregam muitas pessoas que várias vezes se transformam em moradores fixos dos improvisados acampamentos. Dessa forma, após concluídas as obras, nascem pequenas vilas mesclando os moradores nativos com os trabalhadores dos mais diversos lugares.

O vale do rio Apurimac tem uma área de cultivo menor que a do rio Vilcanota e possui imensas montanhas que foram erodidas por suas águas. Segundo o Consejo Transitorio de Administracion Regional de Apurimac estas grandes montanhas fazem deste cânion o mais profundo do mundo com 4.691 metros entre o topo da montanha mais alta (5.991 m.a.n.m) e o nível do rio (1.300 m.a.n.m.).

Vale do Rio Apurimac

Segundo o geofísico Mateo Casaverde o rio Apurimac é o componente inicial de toda bacia do rio Amazonas. Cientistas peruanos consideram que a nascente do rio Apurimac esta no nevado Mismi, a 5.597 m.a.n.m. (15° 30.8’ latitude sul; 71° 40.6’ longitude oeste). A nascente do rio principal do Amazonas é motivo de discussão até hoje. Outros cientistas acreditam que a nascente da bacia amazônica é o nosso conhecido rio Vilcanota, que pedalei desde sua nascente até Machu Picchu – onde o Vilcanota muda de nome para rio Urubamba. Em ambas teorias o rio Amazonas é considerado o maior rio do planeta em extensão e vazão de água.

Para saber mais sobre a bacia do Amazonas entre no site da Agencia Nacional de Águas: www.ana.gov.br

De Chalhuanca subimos para o frio e árido platô da cordilheira ocidental com mais de 4500 m.a.n.m.. Esta foi uma das regiões de atuação do recém banido grupo terrorista Sendero Luminoso. O grupo terrorista surgiu na década de 80 sobre a liderança do graduado Abimael Guzmán e influência do líder comunista chinês Mao Tse-tung. No governo de Fujimori o grupo foi investigado e exterminado, estando hoje o ex-líder Guzmán preso no Peru.

A região do platô é muito pobre e possui apenas pequenos povoados dispersos. Sua pequena economia vem da criação de lhamas. Outra vez passei mal com a comida e parei para descansar no único alojamento de Pampa Marca, um povoado com menos de cem casas. O “hotel” é usado também como matadouro das lhamas e pela manhã do dia seguinte acordei com uma pilha de cabeças de lhamas recém decapitadas na porta do meu quarto. Ali não era, logicamente, um bom lugar para meu estômago. Resolvi então seguir de caminhão até a próxima cidade. Devido ao alto grau de subsistência da região, a estrada ainda é muito pouco utilizada e esperei por mais de três horas uma carona – nesse tempo passaram apenas quatro carros. Finalmente consegui carona com o caminhão que foi pegar os corpos das lhamas. Assim fui até Puquio e por lá fiquei dois dias me recuperando.

Puquio é uma cidade cercada por um bosque com vários lagos e imensas pedras que rolaram de suas montanhas. Dali separei do bom companheiro Michel que seguiu viagem para Arequipa ao sul enquanto segui para o norte em direção a Lima.

Depois de dois dias fechado em um quarto eu já estava louco de vontade de pedalar. É engraçado, parece que vicia. Reparado o “motor da bicicleta” segui para a última subida dos Andes e depois a maior descida de toda viagem. No alto está o parque nacional de preservação de Vicunhas que é muito cobiçada por sua excelente pele (Na lei consta uma multa de mil dólares para o carro que atropelar uma Vicunha na área do parque). Desci incríveis 80 km antes de chegar em Nazca quando saí de mais de 4000 m.a.n.m. até chegar em 1000 m.a.n.m.. Foram três horas de adrenalina numa ladeira que me deu as boas vindas ao deserto.

No meio da descida é possível ver a camada de poeira que flutua na atmosfera do deserto. Submergi nessa camada e agora a visibilidade não ultrapassa os cinco quilômetros.

Descida para o deserto - camada de poeira
Descida para o deserto – camada de poeira

Neste deserto sul peruano está a cidade de Nazca com suas misteriosas e imensas linhas e aquedutos.

Segundo a pesquisadora Maria Reiche, que dedicou 50 anos de sua vida estudando as linhas, “Nazca é o maior calendário astronômico do mundo, particularmente um calendário agrícola que assinalava o levante das águas.” Segundo o pesquisador David Johnson “os desenhos são mapas das águas subterrâneas”. O hidrólogo Steve Mabee da equipe da Universidade de Massachusetts pesquisa hoje a última hipótese buscando confirmar a teoria.

Vista aérea das linhas de Nazca com a estrada e o mirante
Vista aérea das linhas de Nazca com a estrada e o mirante

A Aero Condor (www.aerocondor.com.pe) apoiou o projeto e concedeu um vôo para que eu pudesse ver e tirar fotos dos desenhos que são legíveis somente de avião (outro mistério). Os desenhos estão distribuídos em uma área de 525 km2 e foram feitos pela cultura Nazca (pré-inca) entre 300 a.C. e 800 d.C. Vários desenhos são animais estilizados – pássaros, sapo, cachorro, aranha, baleia, etc. – (também encontrados nas cerâmicas) e chegam a ter trezentos metros de comprimento. Para fazerem as linhas eles escavaram a capa superior de pedras (mais escuras) em até 30 cm de profundidade.

“Algumas coisas podemos explicar hoje, outras no futuro e outras nunca…” – Maria Reiche, 1982

Nazca também possui geniais aquedutos (puquios) que ficam na zona arqueológica de Cantalloc. Apesar de desértica, a região é rica em água subterrânea (basta imaginar que toda água dos Andes ocidentais passam por essa região antes de chegar no oceano). Os aquedutos foram uma hábil forma de captar água subterrânea do alto das montanhas e trazê-la para a superfície da cidade. Essa forma de irrigação funciona até hoje e é responsável pela produção agrícola (algodão, batata, milho, feijão, etc.) que alimenta toda população local.

Local de manutenção do aqueduto
Local de manutenção do aqueduto

“Normalmente o rio tem água corrente somente por 40 dias por ano, desta forma Nazca teria seca por mais de 10 meses se não fosse o trabalho dos antigos índios” – Antonio Raimondi

O tão conhecido caráter sagrado dos elementos da natureza pelas culturas incas é ainda mais forte quando se trata de “água no deserto”. Os aquedutos e as linhas são logicamente rondadas de muitos mistérios e lendas que sempre possuem a água como elemento principal.

Toda região que passei está com sérios problemas de desemprego. Os poucos profissionais que existem trabalham como taxistas ou vendedores em pequenos comércios. Desemprego aliás que sucede em toda América do Sul e vem crescendo assustadoramente com a globalização. O valor da mão de obra aqui é irrisório, uma almoço – que usa ingredientes da agricultura e pecuária manual – custa o mesmo que uma garrafa de água industrializada. As grandes empresas estão sendo vendidas e as estatais doadas, ou melhor, privatizadas e seus lucros logicamente desaparecem nas mãos da plutocracia mundial liderada pelo rei do capitalismo, os Estados Unidos, que também está na liderança da poluição ambiental. Mas o marketing ianque é bem feito: O Sr. Bush posa de mocinho do lado do presidente Toledo, falando de ajuda para combater o tráfico (que existe porque nunca conseguiram combater o uso nos Estados Unidos) e está tudo resolvido. Enquanto isso, no continente da alegria, o Presidente do Congresso da República, Sr. Carlos Ferrero, desfila de bicicleta pelas ruas de Lima e o nosso Romário não é convocado para a seleção. Quem entende?!

De Nazca fui para Palpa, pela estrada Panamericana, num caminho que por várias vezes mudava a paisagem de um deserto árido para áreas muito férteis, onde normalmente estão as pequenas cidades. Pouco antes de chegar em Palpa me chamou a atenção uma pequena fazenda com plantações de manga, laranja, etc., que parece muito com as fazendas do interior de Minas Gerais. Entrei para “assuntar” e acabei estendendo minha barraca embaixo de um pé de manga. Passei o resto da tarde proseando com a simpática família Reategui, uma mistura de espanhóis e peruanos que vivem da venda de doces, sucos e pratos preparados com a produção da casa. Me senti ainda mais em casa quando me ofereceram torresmo com mishkichado – uma bebida muito parecida com a caipirinha.

Água a vista!!

De Palpa fui Ica e depois para o litoral ver pela primeira vez as águas do Oceano Pacífico.

Cheguei no litoral num pedaço abençoado pela natureza: Parque Nacional de Paracas, hábitat e local de migração de 215 espécies de aves dentre elas o pingüim, flamingo e o condor andino. Acampei na praia (a temperatura está ótima para camping – antes o frio das montanhas não me animava muito…) e no outro dia fui pedalar pelo Parque.

A Reserva foi fundada em 1975, tem 335 mil hectares protegidos (65% de mar e 35% de deserto) e foi considerada, em 1992, Zona de Importância Internacional especialmente como Hábitat de Aves Aquáticas (Convenção de RAMSAR). Faz parte do Sistema de Areas Naturales Protegidas por el Estado (SINANPE), que é gerenciado pelo Instituto Nacional de Recursos Naturales (INRENA).

O encontro do deserto com o mar formou imensas falésias e praias incríveis. Uma das formações mais interessantes é a La Catedral que foi formada pela erosão do vento e do mar há aproximadamente 32 milhões de anos atrás (Período Terciário).

La Catedral - Parque Nacional de Paracas
La Catedral – Parque Nacional de Paracas

Depois da pedalada no parque fui para as Islas Ballestas, residência de milhares de pássaros e muitos, muitos lobos-marinhos. Fiquei impressionado com a quantidade e com os sons que eles fazem. Em alguns locais formam-se grutas e o som ecoa e impressiona ainda mais. Muitos barcos turísticos visitam a ilha diariamente. Não é permitido desembarcar e todo tour é feito pela água – e que assim continue eternamente…

Lobos-marinhos nas Islas Ballestas
Lobos-marinhos nas Islas Ballestas

Sigo buscando alguma forma de atravessar o oceano, estou pensando em desenvolver um pedalinho.

Um abraço e até o próximo relatório…
Argus

“Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco,
sem o qual a vida não vale a pena”
Clarice Lispector