Etapa 6A – Relatório 2


Tanzânia – novembro 2004

“Ulisses, o retorno


Como voltar

depois de Itaca

das sereias

dos cíclopes

de tanto assombro

de tanto sangue

na espada ?

Como voltar

se aquele que partiu

partiu-se

e voltará com os fragmentos

do excesso?

Não há retorno.

Há outra viagem

diariamente urdida

dentro da viagem

antiga.

Embora o caminho

da volta

seja percorrido

ninguém retorna

apenas volta a viajar

no espaço anterior

estranhamente familiar.

Como se o regresso

fosse acréscimo

e o viajante descobrisse

que é atrás

que está a fonte

e na alvorada

o horizonte

não há retorno.

Há o contorno

do prórpio eixo

o tempestuoso

périplo do ego

um diálogo de ecos

como quem

tenta encaixar

diferentes rostos no mesmo espelho.

Por isto, o retorno

inelutável

é perigoso

exige mais perícia

que na partida

mais destreza

que nos conflitos

pois o risco

é naufragar

exatamente

quando chegar

ao porto.”

Affonso Romano de Sant’anna

Olá amigos, Dia 01 de dezembro comemoraremos 3 anos na estrada. É muito chão! Já se passaram 28 países e muitas experiências bacanas. Depois de muita reflexão decidi que está na hora de voltar para casa. A saudade está batendo forte… Daqui voarei o oceano Atlântico e aterrisarei em Recife. De lá descerei pedalando para Cordisburgo em Minas Gerais.

Ainda tenho muito chão pela frente mas já dá para sentir um gostinho de missão cumprida. Mas agora é preciso atenção redobrada pois, como escreveu Afonso Romano, “o risco é naufragar exatamente quando chegar ao porto”. O percurso no Brasil será de aproximadamente 3 meses.

De Recife irei para Maceió, Aracaju e Salvador (ano novo), atravessarei a fronteira Bahia-Minas, descerei até encontrar a estrada real e subirei por Tiradentes e Ouro Preto (carnaval) até chegar em Cordisburgo (meados de fevereiro). Mas, como sempre, tudo pode mudar.

Planejei, planejei e mais uma vez modifiquei tudo. Que bom ser livre! Imaginei mil peripécias pela África e América Central antes do retorno mas percebi que, de alguma forma, estava tentando fazer todas as viagens da minha vida de uma só vez. Desconsiderei a energia cíclica que existe em todos nós e a necessidade de concluir etapas para renovar as baterias.

“A única coisa certa do planejamento é que as coisas nunca ocorrem como foram planejadas.” Arquiteto Lúcio Costa

A Tanzânia A história da Tanzânia e a situação atual do país são muito parecidas com as do Quênia. Muita pobreza, muita exploração e muito perigo. Um povo sofrido que nunca teve a oportunidade de ser realmente independente. A região sub-saariana é a mais pobre do mundo. Vi de perto dois países nas áreas críticas de fome do mundo (mais de 35% são subnitridos). Eles fazem parte dos países pobres altamente endividados e sofrem muito com a nova era da golbalização. São escravos do capitalismo e parece que a saída para a triste situação ainda está muito distante.

Segui pedalando pelo litoral até Dar es Salaam. A estrada na Tanzânia é de terra, possui poucos carros e muitas pessoas caminhando ou pedalando. As vilas do percurso são feitas de casas de barro e palha e todos vestem as roupas das tribos com muitas cores. Poucas vilas possuem água encanada ou energia. As pessoas são lindas mas, quando perguntei se poderia tirar a foto de um grupo, uma mulher saiu correndo atrás de mim com um porrete. Tive um certo desconforto por ser o único branco. Várias vezes cumprimentei as pessoas e, ao invés de responderem, ficavam me olhando com uma cara feia. Tentaram me assaltar mais algumas vezes mas felizmente não levaram nada. Cheguei a tomar a decisão estúpida de comprar uma faca de meio metro de comprimento e pedalar com ela na cintura. Essa foi mais uma razão para minha volta, afinal meu objetivo, além de pedalar e educar, é também sobreviver.

A passagem por essa região da África será muito interessante para entender melhor de onde viemos os brasileiros. Estima-se que entre 3 e 4 milhões de africanos foram para o Brasil entre os séculos XVI e XVII e hoje 46% de toda população é de descendentes africanos (Censo 2000-IBGE). Esse número corresponde à segunda maior população negra no mundo, atrás somente da Nigéria. Apesar da situação social brasileira ser melhor que a africana, os negros que vivem no Brasil ainda sofrem muito com os “resquícios da escravidão”. Hoje, no Brasil, a média do salário recebido pelos brancos é duas vezes e meia a do recebido pelos negros e apenas 2% dos negros possuem educação universitária, um percentual cinco vezes menor que o dos brancos. O resultado da discriminação é que 69% da população pobre é negra (fonte: The New Internationalist). A situação é ruim mas existe uma esperança de melhora. Hoje o Brasil conta com leis fortes contra discriminação racial e estuda estratégias para aumentar o ingresso de negros na universidade. Uma mudança que logicamente tomará tempo mas parece estar, pelo menos, começando. Com um pouco de atraso… Viva o 20 de novembro! Dia Nacional da Consciência Negra. Em breve estarei em Recife, no nordeste brasileiro, a região com a maior concentração de negros do Brasil, e seguramnte terei informações mais reais para escrever sobre essa situação racial. Sigo mais feliz que nunca. Não vejo a hora de dançar forró e maracatu!

Bem vinda a Pátria Amada!

Grande abraço, Argus

Para saber mais:
www. tanzania .go.tz
Rural Women-Based Integrated Project in Ruvuma Region, Tanzania

– Jornais da Tanzânia:
Business Times – private weekly Arusha Times – private weekly Independent Television (ITV) – widely-watched private network. Radio Free Africa – private FM network Negros no Brasil www.palmares.gov.br www.mulheresnegras.org Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial www.presidencia.gov.br/seppir/